sábado, 18 de fevereiro de 2017

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Sexta-feira

Você é o encaixe em todas as letras de música.
Você é toda a cor que existe no mundo e que eu ainda não vi.
Você é a proximidade do seguro.
Você é o preço da gasolina que aumenta e a gente reclama.
Você é o canto que eu prefiro do sofá e o lado esquerdo da cama.
Você é os cinco por cento finais da bateria do celular, suficientes pra avisar onde estou.
Você é o bolo que não sola.
Você é a lembrança do pó de café na fila do caixa do mercado.
Você é a tarde de faxina do feriado, a limpeza do armário.
Você é a distância entre o aqui e os entes queridos.
Você é o quadro torto pendurado na parede.
Você é o som desafinado das músicas que eu canto sozinha.
Você é o primeiro gole da cerveja que desce trincando a garganta e aliviando o calor.
Você é o vento cortante do frio na segurança de uma blusa de lã.
Você é a preguiça de manhã, no entrelace de pernas.
Você é a vontade de acordar, levantar da cama e escovar os dentes.
Você é o cheiro que fica depois do banho.
Você é o gosto da comida de mãe.
Você é toda música nova que eu ouço e gosto.
Você é a espera no ponto de ônibus.
Você é a raspa do doce que fica na panela.
Você é o apagar de luzes do cinema quando o filme começa.
Você é a dor na barriga quando a risada dura muitos minutos.
Você é a ideia boa que se transforma em ação, em texto, em quadro na parede, em tatuagem.
Você é o cheiro de livro novo e a última página dos clássicos.
Você é o atraso do trem e do avião.
Você é o mês do dissídio.
Você é a contagem regressiva do Ano Novo.
Você é a lembrança das peripécias da infância.
Você é a agonia do engarrafamento na ponte. 
Você é o fim de tarde chuvoso do pior dia no trabalho.
Você é a bateria da Portela.
Você é todo dia de Sol na piscina.
Você é a praia, o mar e as férias.
Você é o final de semana.
Você é a quarta-feira de cinzas.
Você sou eu em você.
E isso não é uma poesia.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Partida

Estou lidando com a sua morte. Já fiz oração, pedi a Deus que perdoasse seus erros, que ficasse ao seu lado onde quer que estivesse, perdoei em mim todo o mal que já me fez a ponto de conseguir lembrar apenas das coisas lindas que me disse e do quão especial me fez sentir durante a vida. Se, eventualmente, faltasse um Credo ou Pai Nosso pra que a sua alma alcançasse o fim do purgatório, dos tantos que já repeti, o próprio Jesus lhe abriria as portas pelas quais desejasse passar, fossem do céu ou do inferno.  
Revivi seu velório por semanas, lembrando do seu semblante sem vida, mas sereno, da despedida num dia chuvoso de São Paulo. Os momentos que vivemos logo antes de eu saber da sua partida foram repetidos tantas vezes nas minhas retinas que é como se estivessem gravados num filme de fotografia que você tanto dizia gostar. A largura dos olhos, o nariz, as costas se deslocando em linha reta e sumindo no horizonte, na passada apressada do cotidiano quando não sabemos da proximidade do término. Podia ver o tamanho do coração que eu sentia nas mãos pulsando, mais dentro do meu peito que no seu, porque éramos a mesma ideia, instrumentos diferentes em harmonia tocando uma melodiosa e compassada canção de ninar. No final, ambos sempre fomos cardiopatas e eu só dei mais (ou menos) sorte que você no controle dos sintomas da enfermidade. 
Não há forma certa de proceder perante o óbito. Se dá dignidade ao morto, fazem-se as últimas honras, oferecem-se flores derramam-se as lágrimas que desejam ser derramadas e,  tão logo quanto possível, a dor passa e um dia restarão apenas as saudades. A ausência da voz, a impossibilidade de resposta para as perguntas absurdas que fazia de madrugada e você me mandava dormir, as discussões filosóficas sobre o amor, sobre os quatro cantos do mundo, ainda que o nosso se resumisse a um cômodo e meia dúzia de ruas da cidade cinza, as sugestões inesperadas, tudo isso, ao mesmo tempo que fica, acaba. É o fim do nosso ciclo, até que um dia voltemos a nos encontrar, Deus sabe onde. É um processo difícil, mas abri mão da muleta dos fármacos dessa vez. Vou encarar esse vazio na paz da loucura particular que inventamos, mas já sei que será árdua tarefa. 
E, ao contrário do que se pensa, saber que você ainda tem um corpo orgânico que se arrasta no mundo, uma carcaça de uma alma desconhecida, não a torna mais fácil.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Sobre sonhos e falta de sono

Tem dias que eu me sinto diferente de todas as pessoas. Eu sei que sou, mas digo num sentido menos amplo, do sentir-se. Todas as pessoas que conheço são cheias de sonhos: umas querem um carro, outras, uma casa, um imóvel de veraneio, um móvel planejado, uma moto maior, um celular melhor, um ventilador de teto, coisas maiores ou menores, de longo, médio ou curto prazos. Além dos bens materiais, alguns dos meus amigos sonham em morar no campo, numa cidade maior, na praia, na rua ao lado, viajar todo o ano (mesmo sem dinheiro, por isso separei dos "bens materiais"), conhecer determinados lugares, chegar ao topo de montanhas, partilhar de certas culturas, conhecer o Egito, outros em relacionar-se com pessoas de certos perfis, encontrar uma tampa de panela, mesmo sendo frigideiras (e eu, um pirex), casar-se em determinado lugar, ter um, dois, três ou nenhum filho, ser atletas de ponta, ganhar medalha olímpica, ser presidentes da empresa, concluir o mestrado, o doutorado, ter reconhecimento público ou tímido, na festa da família. E, diante de tudo isso, eu me vejo sem sonho algum. Não quero carro, não quero casa, não tremo em vontade de ir a lugar algum. Claro, tenho quereres imediatos, gosto quando coisas boas acontecem, mas não tenho esse planejamento, essa ânsia por fazer algo acontecer. Eu não tenho metas pessoais, nem pra um, nem pra cinco, nem pra daqui a dez anos. Nunca consegui responder a pergunta clichê do RH questionando onde eu me imaginaria daqui a cinco anos, porque eu não me imagino em lugar nenhum, senão num sentimento de felicidade, que é só o que eu sei e onde vivo. Se for pra ficar no Rio, eu fico, se for pro Mato Grosso, vou, se tiver que voltar pra cidade cinza, eu volto. Posso me desestabilizar momentaneamente pelas mudanças, mas logo acho graça em onde estou, no que como, no que vi, ouvi, li, nas coisas novas que o mundo traz, sem divagar ou desejar o que não tenho. Se tiver filhos, serei a mãe afetuosa e talvez austera que conseguir ser. Se não os tiver, terei canários. Se pisar na Europa, sentirei o cheiro de cada cantinho de terra e contemplarei piscar de cada luzinha, mas se não for, continuarei pisando na grama daqui, enquanto houver. Se um dia existir aquele que mereça meu coração, lhe darei sem tirá-lo do peito, para que tenha o todo. Se não existir (ou eu não tiver a sorte de encontrá-lo), continuarei distribuindo o amor às pessoas todas, os biscoitos aos vizinhos, os conselhos aos amigos, as risadas aos garçons, o olhar terno a quem me estende a mão em pedido. Se me recostar à noite sob um teto com vista pro mar, serei grata, mas se o dia chegar em que não houver teto e nem chão, confiarei que esse é o necessário pra que eu seja mais forte.
Parece arrogância ou falsa autossuficiência dizer que se está satisfeito com o que se tem, ainda que os problemas, as preocupações, as dorzinhas, os ressentimentos, o cansaço façam parte do tudo? Não sei... Mas isso é o resultado da minha Fé. As únicas coisas que consigo pensar em querer sempre, mais que tudo, são a misericórdia de Deus e, não nessa ordem, ter um cachorro (e hoje, tenho três), abraçar um bicho preguiça uma vez na vida e fazer o mundo partilhar da minha alegria. De resto durmo e acordo sem sonhos, sem grandes ambições, sem o almejo motivador dos grandes feitos, porém sem inveja, porque nada quero do que não é meu. Tenho sim, fome, e como. Tenho dor e quero que ela passe. Tenho sono e durmo. Tenho um pacote de dados que me limita, e espero que ele se renove. Mas não quero nada, nunca quis nada, não posso querer o que não quero. À parte isso, tenho em mim todo o amor do mundo.


*Adapt. Fernando Pessoa in Tabacaria.





[Nota de rodapé:

O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo te aprender o total do querer que há e do que não há em mim

Caetano Veloso - O Quereres]

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Mais um

Eu, que andava sem rumo, sobrevivendo mais do que vivendo, na metamorfose forçada que os anos trazem mais pra alma que pro corpo que a embala, encontrei sem querer, em você, um mapa. Para onde ele me levaria, não importava, porque quando não sabemos aonde queremos ir, qualquer caminho serve*. Olhei-o nos olhos e senti um encanto que me despertou o interesse em segui-lo, saber onde andava, entender seus caminhos pra finalmente alcançar a paz ou me aventurar na busca. Ainda que chegasse em terreno árido, onde não pudesse plantar para a própria subsistência e tivesse que recolher os pertences novamente, caneta, papel, coração, lágrimas, tudo na mochila para a partida, as paisagens do caminho seriam (e são) o que faz a vida ter sentido. O presente, como você me ensinou.

Guiando-me pelas marcações gráficas, conheci primeiro o seu sorriso absurdo que me amolece o coração e me arranca risadas e rubor, somente em lembrá-lo. A timidez também me fez conhecê-lo, em parte, e ansear pelo momento que me tomasse pelas mãos para andarmos no passeio público. E assim fizemos. Também por elas me guiei até seus ombros, ora como um lugar pra recostar o sono, ora como companheiro fiel e bastidor dos meus dentes na angústia. Nesse andar, ouvi sua voz dizer o que não esperava e, brevemente, me perdi de mim pra logo me reencontrar pela força das suas mãos a me devolverem pra trilha. Depois, caminhei até o que seria o ventre da terra, e ali me pus a dormir e sonhar com outros dias, com maiores e menores distâncias, as menores possíveis, quando um e dois não são mais dois, mas um como todo, misturados numa liga orgânica.

Cheguei, no enquanto de um agora, ao lugar que não sabia esperar: você, absorto em sonhos, transmitindo a paz para quem o assiste, encolhido nas cobertas como menino, no descanso merecido dos justos. Injusta foi, na manhã, a sua partida. E a minha, por consequência, pra levar cada um ao seu lado, numa distância tão curta quanto infindável, para seguir os planos diários, semanais, mensais e atemporais, sós, somente com lembranças. As estradas continuam a nos levar e eu desejo conhecer mais ainda os cantos do seu mundo, mas, por ora, me contento em sentar-me por aqui, na mais bonita das cidades, e esperar até que conclua o seu caminho pra, então, voltar, como o vento das suas mãos no meu rosto, dizendo que eu também sou o seu lugar.



*Adapt. Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Saulo, Saulo, por que me persegues?


São Paulo é um dos apóstolos de Cristo que mais admiro. Junto com Teresa de Jesus, Santo Agostinho e São Francisco, é responsável por grande parte do que considero meu aprendizado como, além de cristã, católica, um ser humano de bem que procura se aprimorar diariamente para agir de acordo com o que é esperado de mim por Deus. E essa, que é uma de suas mais famosas correspondências aos Coríntios*, tão difundida e que já virou tema de música, me senti à vontade para complementar e parafrasear a meu modo, exprimindo o que eu consigo entender hoje como sendo o Amor, ou a Caridade.

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Ainda que eu pudesse me fazer entender por todos os seres, se esse entendimento não fosse motivado pela paz, ele de nada valeria. Se juntasse em mim todo o conhecimento, se passasse anos me dedicando a toda a ciência, o resultado de todo o meu aprendizado seria o amor, porque ele é a matéria que a tudo compõe, a lei que tudo controla. E se eu não pudesse ou me esforçasse em dividi-lo com o o mundo, eu nada teria aprendido, e mais uma vida seria necessária para recomeçar do início o meu estudo. O amor só é amor se não é guardado para si, se é semeado, porque, como Seu Criador, quanto mais se divide, mais se tem. O amor é paradoxo, é conforto, é quietude e movimento. O Amor é o abrigo na tempestade, mas também é a coragem de quem cai do ninho e começa a voar. O Amor é força sem deixar de ser delicadeza, é delicadeza sem fragilidade.

O amor não é permissivo, não é promíscuo, não cala, não desampara, não se encolhe perante as injustiças. É o antídoto do medo, do arrependimento, da miséria e do desalento. Age com decisão e discernimento, sem confundir-se com a paixão e a euforia. O amor é consciente, tudo revela, tudo cura dado o justo tempo pra que o faça, tudo pacifica. O amor busca a concórdia, oferece o ombro, os ouvidos, consola os aflitos, nos faz entender tudo, nos torna satisfeitos com tudo.

Antes de hoje, eu caminhava errante buscando sentidos materiais para o mundo, perseguindo uma felicidade ilusória que idealizava como sendo a realização do ser humano, procurando em lugares diversos onde estaria o sentido em morrer por quem nem se importa ou não se interessa em entender essa morte em sua remissão. E, então, a força desse Amor me mostrou que Ele é um fim em si mesmo, um caminho, uma atemporalidade que consegue tornar as mazelas, mansidão. E então, entendo que o amor não é criação de Deus, mas o Seu próprio Ser, Sua extensão pura. Enquanto o negamos, permanecemos na dúvida e na inexatidão, vagando pelas escolhas da vida, com a dor da incerteza, das orações (gramáticas) condicionais. Mas quando conhecemos a fé, nos apropriamos do sentido, restando apenas a confiança plena naquEle que tudo ama. E esse sim, pode mudar o mundo.

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*1 Coríntios 13:1 - 13

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Eu achei que esse seria o dia de maior inspiração do ano. Que os quilômetros de rodovia pela janela do ônibus fossem me trazer palavras lindas na cabeça, pra eu espremer que nem pano e pingar tinta formando texto no chão. Mas nada me veio.

Foram tantas as músicas em que imergi, olhando o movimento da chuva no vidro, comparando a natureza com a vida, vendo a beleza das coisas simples que eu deixo de lado. Senti o toque de Deus no meu rosto, ouvi as melodias e as palavras de outras pessoas que, como eu, em momentos como esse, tentam traduzir em palavras as emoções que nos permeiam. E há aqueles tão talentosos que, em poesia ou prosa, conseguem a proeza de justificar o bater do coração, o suor e as lágrimas. Mas nem eles tinham o que dizer pra mim hoje. Foi só silêncio.

Como explicar essa sensação de felicidade química, a satisfação pelo sucesso dos projetos, de anseio por realizações, de falta de esperança com o mundo, de aprendizado, tudo embutido num vazio que, mesmo com tudo, continua ali?Talvez seja essa a grande questão do mundo, o que tenha motivado as ciências, que tenha originado a Psicologia, que tente ser preenchido pela indústria e pelo capitalismo, o eterno vazio que existe em casa ser humano, que nos engole dia a dia. O que é essa sombra? Qual é o nome disso que não há remédio que cure, terapia que atenue, música que conforte, mão que afaste, beijo que afague?

Meu Deus, meu Deus, não me abandone, porque é só na Sua presença que há forças para, mesmo no nada, persistir.